João Gama, ressalta, em seu relato sobre a luta da comunidade, que a conquista da terra não basta. 

Uma coisa que conseguimos foi a posse da terra. Pensei que ia ficar feliz, mas não estou feliz, não é como nós queria…

Mas temos alguns problemas. As divisas entre os lotes já estavam prontas. Mas tem um vizinho que passou para dentro do meu terreno de um lado, para tirar madeira. Este ano, outro vizinho entrou do outro lado. Não conseguimos nos entender entre nós, só pela associação dos moradores também não. O presidente da associação veio e ajudou, a marcar as divisas. O gestor da RDS (do ICMBio) veio, mas não se interessa por este tipo de problema. Quando eles estavam tirando a madeira, nem o presidente, nem o gestor vieram.

Fico calado, Deus me dá a recompensa, não adianta tomar o mundo, se perde a alma.

Subindo o rio, chegamos na comunidade do alto Jaburú, onde fomos recebidos por Codó, Manuel, seu filho, e Edselma, sua esposa. 

Com seus cabelos e barba totalmente brancos, contrastando com a pele morena, Codó tem fala empolgada, mas mansa. Ele é  um dos moradores mais ativos na criação da associação e da RDS. Sua casa é uma das últimas, subindo o rio. A partir dali, os barcos a motor ou mesmo de rabeta[1] são proibidos: para ir além, tem que ser no remo:“decidimos assim, porque, se a gente quer preservar a floreta, tem que proteger esta cabeceira de rio”, diz ele. De casco, lea-se ainda 3 horas para chegar na cabeceira do rio.

Ele nos conta outra parte da história do rio Jaburú.

Meu pai veio do Ceará. Foram para o “centro”[2], porque fugiu da ditadura de 1936 [3]. Quando chegou, tinha os ‘cabanas’. Ainda tem vestígios de cisternas e cacimbas deles por aqui. Antes de 1943, deixaram o centro e vieram para a beira do rio. As casas eram de paxuba, madeira de uma palmeira, não de tábuas como hoje. Me lembro que, pequeno, cai da casa no rio.

[João Gama se lembra, então, que veio ao velório do avô de Codó e que, na época, eles já viviam na beira do rio.]

Trabalhavam na seringa. Tinha uma casa na virada do rio que era um entreposto. Sangravam a seringa, colhiam o látex que ficava no pote, faziam os rolos de látex defumado. Aproveitavam também o sernambi, que escorria no chão depois de tirar os potes. Traziam a borracha nas costas, em 5 horas de caminhada do coentro.

A seringa tem uma história linda. Era uma mãe: a floresta era toda em pé.

Eles também plantaram cacau, faziam roça e arroz, feijão, batata doce, macaxeira, inhame, banana. Tiravam semente de virola, depois, nos anos 70, as toras de virola. Depois, passaram a tirar o palmito do açaí [4].

No começo, tinha umas 10 famílias descendo o rio e umas 5 subindo. Hoje, tem mais ou menos 200 famílias no Jaburú. Mais famílias, quer dizer menos peixe. Já passamos por situações complicadas. Em 1966, teve uma seca, morreu tudo, peixe, bicho, caça. Foi na época em que a Brumasa estava fazendo ‘pico’ [5] na floresta. Teve outro ano, também, encheu muito o centro, mas, depois, no mês de março [6], secou tudo. Morreu os peixes tudo.

Nós conquistamos a RDS [Reserva de Desenvolvimento Sustentável]. Se é sustentável, tem que saber usar para se sustentar. Não adianta só estar no papel. Tem que ser de verdade. Nós temos que fazer alguma coisa. Deus disse: ‘faz por ti que eu te ajudarei’.

Então, estamos com um projeto: vamos fazer o monitoramento aquático por 5 anos, com o IPAM [7], para ver os peixes, o camarão e tudo o que tem no rio. Aqui, na comunidade de São João, somos umas 19 famílias fazendo o monitoramento. Mais seis comunidades do Jaburú fazem isto.

Eu e o João Gama, estamos já encerrando, temos que colocar as coisas nas mãos dos jovens, fazer o jovem assimilar o que estamos fazendo, para devolver para a natureza, para eles levarem as coisas para se manter e manter a floresta.

Temos problemas para registrar o monitoramento. Tem comunidade que não está preenchendo direto, mas está com mais dificuldade, mais gente, menos peixe. Sugeri envolver os professores, mas nosso problema é que vem os livros do MEC com coisas da cidade, que não tem condições de aplicar aqui. Os alunos não aprendem a realidade da ida, eles querem estudar para um emprego, os livros tiram os pés do chão dos meninos.

Hoje, não tem mais os grupos de jovens, como tinha na igreja, o evangelho na prática, hoje vivem na teoria, só pensam em dinheiro.

Tivemos uma luta para manter nosso açaizal e a madeira mais equilibrados. Antes, a gente combinava o preço, o atravessador chegava e não conseguia comprar mais barato, mas, hoje, tem gente querendo se aproveitar, os atravessadores, que se organizam, com 3 ou 4 barcos, que se combinam. As pessoas pensam que são livres, tem o açaizal deles e tem precisão, então, aceitam preços mais baixos.

Notas

[1] Os barcos grandes, usam motores náuticos comuns, que navegam com dificuldades em alguns igarapés ou furos, ou perto dos igapós, de pouca profundidade ou com muita vegetação submersa. Os casos ou barcos menores, usam as “rabetas”, motores de popa em que as hélices ficam no final de uma grande haste de metal, longe da popa do barco. O termo é também usado para as próprias canoas que levam a rabeta.

[2] O “centro”, são as regiões nos centro das ilhas, com terra firme. O deslocamento para a beira dos rios, onde moram hoje, corresponde ao declínio da exploração da borracha, substituída em parte pela extração da semente e, depois, da madeira da virola e, em seguida, do palmito, complementada pela pesca de camarão e outros pescados.

[3] Suponho que seu pai tenha tido ligações com o o levante que eclodiu em 1935, liderado pela ALN – Aliança Libertadora Nacional, ligada ao Partido Comunista do Brasil -, que envolveu essencialmente grupos militares do nordeste brasileiro, mas também na capital, Rio de Janeiro. Posteriormente chamada, de forma pejorativa, de ‘Intentona comunista”, ela foi debelada em 1937, depois de alguns conflitos armados e muitas prisões. Getúlio Vargas estava no poder e usou o episódio para restringir ainda mais as liberdades democráticas e implantar uma política de perseguição aos militantes e às organizações comunistas no país. Um dos pilares desta estratégia foi o Plano Cohen, idealizado pelos integralistas.

[4] No início dos anos 90, uma lei proibiu o corde do palmito de jussara (Euterpe Edulis), endêmico da Mata Atlântica, o que provocou forte demanda pelo palmito do Açaí, proveniente da Amazônia, em especial das regiões ribeirinhas do Pará.

[5] Caminhos de delimitação de áreas, tanto para delimitar a propriedade, quanto para delimitar a “colocação” de cada ribeirinho.

[6] As chuvas e as cheias costumam acontecer a partir de dezembro, no mais tardar em janeiro ou início de fevereiro. Uma seca em março é, portanto, excepcional e corresponde a uma antecipação do período de estiagem.

[7] “O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) é uma organização científica, não governamental, apartidária e sem fins lucrativos que desde 1995 trabalha pelo desenvolvimento sustentável da Amazônia. Nosso propósito é consolidar, até 2035, o modelo de desenvolvimento tropical da Amazônia, por meio da produção de conhecimento, implementação de iniciativas locais e influência em políticas públicas, de forma a impactar o desenvolvimento econômico, a igualdade social e a preservação do meio ambiente”. Para saber mais: https://ipam.org.br/pt