Ao visitar Axiquara, Hermes, que foi presidente do STR e é um dos líderes históricos de Gurupá, faz um balanço destas décdadas de luta.

A gente percebe que, quando foi retomado, o sindicato evoluiu muito, tivemos muitos sócios, muitos projetos. Chegamos a fazer congresso do sindicato com 300 ou 400 pessoas. Hoje, temos dificuldade de reunir 100 pessoas.

É que, de uma época para cá, surgiram muitas outras instituições… Nós ajudamos a criar a Colônia de Pescadores, ajudamos a conquistar os 4 meses de seguro defeso[1]. Muitos associados do Sindicato foram para a Colônia. As associações locais também diminuíram um pouco.

Mas a luta que se fez foi muito proveitosa. A maioria das pessoas vive da produção. Avançamos na agricultura. No extrativismo, também, e vamos indo.

Em Santo Antônio do Uruaí, nossa atenção ficou voltada quase que exclusivamente para o relato de Manoel do Carmo, um dos líderes da luta do STR desde os seus primórdios, até o dia de hoje. 

Em 1986, retomamos o STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Nós ficamos nos devendo esta história. Tem coisas que a gente não resgatou. Eu estudei no seminário, sei mais coisas, mas nós não socializamos.

Em 1968, teve o [Concílio do] Vaticano II. No início de 1970, chega o Padre Giulio em Gurupá, logo depois de ordenado, empolgado. A missão de Padre Giulio foi de vir ao Brasil e à Amazônia, evangelizar os pobres. Ser pobre não é a vontade de Deus. Deus não gosta de ver gente pobre. A terra é de Deus, de todos nós e, portanto, de quem trabalha nela. A gente tem que lutar para se libertar.

Ele estudou sobre isso: cabelo comprido, fumando, tomando cerveja, jogando bola, levava tabaco para fazer cigarro com as pessoas. Foi um contraste com o anterior, que dava “coque” nas pessoas para pôr na linha. Ele veio com uma filosofia de trabalho de base: criaram-se as comunidades [eclesiásticas] de base.

Italiano, ele era muito rígido: tinha a ideia de que tudo tinha que passar pelas mãos dele, que a última palavra era dele. Dizia que o STR devia ser dirigido por trabalhador rural e não por uma pessoa que obedecia os patrões. Foi assim que surgiu a oposição sindical em Gurupá.

O padre Giulio e as irmãs controlavam a oposição. O problema é que o antigo presidente do STR participava das semanas catequéticas, financiando as refeições e outras coisas. Então, nas reuniões da oposição sindical, participavam pessoas que iam contar tudo para o presidente. Três eleições foram perdidas. Adelino, irmão do Bira, foi candidato nas três. Eles roubaram na contagem, jogaram cédulas na entrada da cidade no dia da apuração.

Em 1982, criou-se o PT – Partido dos Trabalhadores. Nesta época, eu estava em Santarém estudando filosofia e teologia em um seminário que tinha sido criado para formar padres amazônidas para o Amazonas. Esse seminário foi um projeto do Antônio Vieira, um forte educador popular da FASE. Quando transferiram o seminário para Belém, voltei para Gurupá. Fecharam este seminário em 1984, porque formava padres muito revolucionários, que criticavam a própria igreja.

Quando voltei para Gurupá, recebemos o apoio dos companheiros de Santarém, que tinham criado a oposição sindical lá. Então dissemos ‘chega, se no país a maioria dos STR tinha sido reconquistada, se tinha a CUT, se tinha aspiração de liberdade, Lula, etc… a gente também podia fazer’.

Começamos o trabalho de base om a minha coordenação e outras 15 pessoas. O plano A era participar das eleições, e, portanto, formar uma chapa. Mas, para nós, estava claro que não ia ser por esta via, que iríamos os 15 para a chapa, tínhamos claro que muitos dos que estavam na oposição eram coordenados pelo Padre Giulio. Então, criaram a chapa e uma comissão paritária com o STR. Mas, dos 15, só 5 pessoas, eu o Adelino, irmão do Bira, e mais alguns, formamos um grupo menor. Só 5 sabiam o que a gente ia fazer.

O presidente do STR filiou muitos sócios fantasmas. O Nelson, do nosso grupo, meu irmão, encontrou a pilha de fichas dos sócios fantasmas, puxou as fichas, denunciou. O presidente rasgou as fichas para tentar esconder.

Aí, mobilizamos 150 pessoas e fomos para o STR. O presidente foi na delegacia, pedir que a polícia fosse retirar a comissão paritária do STR. O Moacyr, que depois tornou-se prefeito [pelo PT] tinha boa fala. Nós orientamos ele, ele falou e propôs: “nos declaramos acampados no STR”. Todos toparam e aplaudiram. Dez minutos depois, chega a polícia. Dissemos que não íamos sair. A prefeita colocou a PM estadual alí perto. Mas aguentamos 54 dias acampados na sede do STR.

A Direção Regional do Trabalho foi acionada e constatou as irregularidades. Ela nomeou uma junta diretiva, mas o residente não aceitou a lista deles. Aí, enviamos a nossa lista para a DRT, que nos nomeou. Tínhamos 6 meses para organizar as eleições.

Durante os 54 dias, tivemos apoio da igreja, apoio moral, logístico, alimentação, etc. Tínhamos também articulação com a CUT nacional e estadual. Com o tempo, a igreja descobriu a nossa metodologia, o tal grupo mais restrito. O padre Giulio se sentiu traído, como se tivéssemos usado a igreja.

Foi um erro e ele teve dificuldade de acompanhar o surgimento dos movimentos, das organizações, com lideranças que ele mesmo formou, mas que agiam por conta própria. Além disso, isso ajudou a esvaziar a igreja de lideranças e de participação. Com o crescimento do trabalho da FASE e do STR, a igreja reforçou muito esta oposição ao nosso movimento.

Eu tenho um problema com isso. Me dói pensar nessa resistência da igreja. Sou “não grato” para o padre Giulio. A sua esposa, Bira, a Rosa, inclusive, não me compreende ainda. Quero discutir isso com ela um dia: acho que ela também não gosta.”

“Terra, saúde e produção”, a gente dizia, era nosso lema. ‘Temos nosso documento pessoal, mas nossa profissão ninguém reconhece, ninguém sabe que a gente existe e está aqui.’

Produção: se a gente está aqui, temos que poder viver desta produção toda, sem depender do patrão, vender independentemente dele.

Houve conquistas importantes, mas ainda há lutas, ainda temos que lutar pela terra e pela produção.

No primeiro mandato do Moacyr, houve uma migração grande para a cidade. Havia, lá, na área urbana, uma área da companhia Xingú. Com a ajuda do prefeito, ela foi tomada pela população, que construiu casas lá. As pessoas diziam: ‘agora estamos no poder, temos na prefeitura o companheiro Moacyr’, foram para a cidade tentar conseguir casa, emprego, etc. As pessoas não têm o exercício da cidadania, mas tem clareza dos princípios. As pessoas acharam que iam conseguir do prefeito aquilo pelo que estavam lutando.

Também teve a questão da educação. Tinha só até a 3ª série nas comunidades. As famílias iam para a cidade para os filhos poderem estudar.

Fui candidato a prefeito e isso complicou a minha eleição. Outro fator que dificultou foi que, na gestão do Moacyr, com o problema de personalidade dele, o ego dele, ele fez muitas concessões, ‘abriu muito as pernas’. A coisa se complicou, a ponto de que houve uma espécie de intervenção branca do PT na administração municipal, que passou a controlar a gestão dele, no final, para não haver risco de impeachement.

O Moacyr, hoje, deu uma guinada grande, para o lado populista. Tem ainda boa relação com a gente. Ele foi para o PSD. Agora, está voltando a ideia de juntar com o PSD [Partido Social Democrata, de direita] do Moacyr. Muita gente pensa que ele foi para o PSD, mas não deixou de ser PT.

Nota

[1] Durante uma parte do ano – o defeso – a pesca é proibida, para assegurar a reprodução dos peixes e do camarão. Neste período, os pescadores, credenciados pela Colônia de Pescadores, recebem recursos governamentais (“seguro defeso”).