Em 1986, o Jocojó foi a primeira das comunidades nas quais trabalhei. À época, os madeireiros estavam atuando nas proximidades e tentavam invadir as terras da comunidade para cortar madeira. faziam picadas na mata, no limite das suas posses, que mantinham vivas, para mostrar aos madeireiros até onde poderiam ir.

Em alguns casos, saíam para caçar à noite, perto dos acampamentos dos madeireiros, para mostrar que não estavam ali de brincadeira e estariam prontos para se defender em caso de invasão. Chegaram a queimar os acampamentos de madeireiros algumas vezes e houve troca de tiros em casos alguns extremos.

No trajeto de carro de Gurupá à Comunidade do Jocojó, que dura pouco mais de uma hora, Bira Pantoja nos conta um pouco da história da comunidade, das conquistas recentes, mas não esconde as dificuldades.

“Os moradores do Jocojó eram escravos na produção de mandioca. Quando veio a abolição, foram se esconder na Maria Ribeira[1], mas acharam que não era muito seguro. Então, atravessaram o rio e foram se embrenhando na mata, para se proteger. No caminho, iam derrubando algumas árvores para fechar a subida do rio. Durante décadas, eles tinham suas relações com o mundo por um liberto que morava ali, na beira do rio, que fazia as compras, levava e trazia notícias…

“Tivemos um grande parceiro, o Daniel[2], que veio de Oriximiná[3] e que trouxe para a comunidade esta luta dos quilombolas. Começou com os encontros “Terras negras”, da igreja católica. No primeiro, foram 3 pessoas da comunidade do Jocojó.

“O Estado do Pará, quando o governador era o Almir Gabriel, adotou uma legislação própria sobre o assunto[4]. Nesta época, foi determinado que as igrejas[5] e os padres iam trabalhar esta questão em todos os lugares em que tivesse indício de que eram comunidades negras. Aí, “caiu a ficha” deles. Com ajuda da FASE, conseguiram apoio e recursos para preencher as fichas e fazer os levantamentos. Veio a Lúcia Andrade[6], da Comissão Pró-Índio[7], que fez os laudos antropológicos.

“Nas fichas, tinha uma pergunta: ‘tem descendente da comunidade de vocês nas comunidades vizinhas?’. Aí, fomos vendo que havia descendentes dos primeiros moradores do Jocojó até no Alto Tucuruí. Com isto, eles encontraram a forma de garantir a posse de suas terras.

“Em 1999, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) concedeu o título de posse das terras. A entrega dos títulos foi no dia 28 de julho de 2000. O reconhecimento pelo governo federal veio mais tarde, em 2004, quando a Fundação Palmares[8]reconheceu as 11 comunidades quilombolas de Gurupá, em torno do Jocojó.

“No Jocojó, havia 25 famílias na época da regularização. Nas 11 comunidades quilombolas, havia um total de 350 famílias. Hoje, são mais de 550. Com a regularização, muitas famílias que haviam deixado suas terras para ir para Porto de Moz ou para o Jari, voltaram para suas terras.

“Os conflitos não acabaram. Houve, por exemplo, roubo de tela do aviário. Mas os conflitos entre as famílias diminuíram muito depois da regularização. O que fizeram, foi definir o perímetro, um limite de respeito de cada comunidade. Nas comunidades, a terra não foi dividida em áreas individuais para cada família, apesar de cada família ter suas áreas de cultivo e manejo.

“O poder dos madeiros não diminuiu, também. As comunidades estavam tentando fazer os planos de manejo e obter, com o INCRA, autorização para a venda de madeira de forma sustentável. Mas o processo era muito complicado.

“As madeireiras chegaram com a proposta de fazer estes planos de manejo e se encarregar para que fossem aprovados. Eles tinham o poder econômico e resolviam tudo, então, cooptaram as lideranças: várias comunidades acabarem aceitando. Em vez de um plano comunitário, acabou sendo um plano de manejo das madeireiras. O corte de madeira preserva mais do que antigamente, mas não é o ideal, porque eles acabam derrubando mais árvores do que o necessário e a lógica não é a mesma que as comunidades queriam implantar. Além disso, eles tiraram alguns princípios da caminhada para chegar em objetivos mais interessantes para as comunidades, para a organização das comunidades e a preservação.

“Nesta luta, os quilombolas criaram a ARQUIMG – Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Gurupá. Mas, como esta associação não fazia reunião há mais de 2 anos e estava meio parada, as comunidades próximas do Jocojó criaram a ARQUIJÓ.”

Notas

[1] Comunidade de terra firme, localizada próxima da desembocadura do igarapé de mesmo nome no Rio Amazonas.

[2] Daniel Souza, um dos líderes das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Pará, membro da comunidade quilombola do Jauary, rio Erepecurú. Para conhecer mais a fundo a luta dele e da sua comunidade:

https://www.uniamazonia.co/2019/03/07/quilombolas-da-amazonia/

https://core.ac.uk/download/pdf/230328989.pdf

https://cpisp.org.br/quilombolas-em-oriximina/

http://novacartografiasocial.com.br/inauguracao-do-centro-de-ciencias-e-saberes-da-comunidade-quilombola-do-jauari-francisco-melo-oriximina-pa/

Um belo livro, com 16 artigos e lindas fotos, disponível para download https://cpisp.org.br/wp-content/uploads/2016/09/CPISP_pdf_EntreAguasBravaseMansas.pdf

[3] A Terra Quilombola Boa Vista, em Oriximiná, PA, foi a primeira do país a ser titulada, em 20 de novembro de 1995.  https://cpisp.org.br/primeira-titulacao-de-terra-quilombola-no-brasil-completa-20-anos/.

[4] O Estado do Pará foi pioneiro na legalização das terras quilombolas e tem uma legislação bastante avançada sobre o assunto.

[5] Grupos católicos, organizados em torno das capelas das comunidades.

[6] Lúcia Mendonça Morato de Andrade, antropóloga, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio de São Paulo.

[7] ONG de São Paulo, que atuava em comunidades indígenas e quilombolas. Saiba mais sobre a ONG: https://cpisp.org.br

[8] Fundação do governo federal, responsável, entre outras coisas, pelo reconhecimento das comunidades quilombolas, primeiro passo para o reconhecimento e a demarcação do território das comunidades quilombolas. Para saber mais sobre as terras quilombolas:

https://cpisp.org.br/direitosquilombolas/observatorio-terras-quilombolas/quilombolas-brasil/

https://cpisp.org.br/primeira-titulacao-de-terra-quilombola-no-brasil-completa-20-anos/

http://www.palmares.gov.br/?page_id=52126