Ao chegarmos na comunidade, fomos direto para a casa de farinha, pois estavam no meio de uma fornada. Hermes, irmão de Bira, que organizou nossa viagem e estava presente nesta visita, Maria e Adinaí nos receberam e, sem parar o trabalho, nos contaram a sua história.

Hermes foi presidente do STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais de 2000 a 2005. Atualmente, é o filho dele que está na presidência.

A gente conseguiu o documento da terra para a ARQMG-Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Gurupá. O documento é coletivo, envolve 13 comunidades. Mas fizemos a divisão interna entre as famílias, de acordo com o que cada família cuidava antes. Tem áreas de terra firme, área de várzea, área para as casas, etc. Houve troca de áreas entre famílias.

No nosso caso, acabou que a casa ficou longe da área da roça, mas a gente preferiu ficar aqui, na vila. Agora, com tudo dividido, já sei o que vou fazer, o que vou deixar para meus filhos.

Em 1996, conseguimos os projetos do FNO – Fundo para a Região Norte, que financiou projetos para plantio de açaí, banana, café e outras plantas, consorciados ou não. Não deu o resultado que se esperava, muitos não conseguiram pagar o banco com o palmito. O projeto já vinha pronto, com técnicas que não davam certo. Chegava técnico que queria que a gente destocasse a várzea para plantar em linha[1].”

Depois, tivemos os projetos do Fundo DEMA, que buscava se contrapor ao que foi o FNO. Este fundo foi financiado com os recursos de uma grande apreensão de mogno, realizada pelo IBAMA. Conseguimos que os recursos fossem alocados para a FASE-Gurupá. Foram R$ 20.000,00, que financiaram 20 famílias, R$ 1.000,00 por família. O projeto foi executado pelo Sindicato, que prestou contas, tudo certinho.

Os recursos eram para comprara implementos, sementes, mudas. Os técnicos eram os da Casa Familiar Rural[2] e era o produtor que dizia o que devia plantar e como, mesmo que não fosse recomendado. Quem quisesse seguir a recomendação técnica, fez, mas quem não quis, fez como queria.

Muitas famílias que nem tinham área produzindo, já conseguiram. Uma família fez açaí com pupunha e, só 3 anos depois do plantio, tirou esse ano 2 toneladas de palmito de pupunha. Muita gente, mesmo sem o dinheiro do fundo, começo a fazer coisas e melhorar, só vendo o que os outros fizeram, aprendendo.

Mas tem a questão do individualismo. Porque o coletivo não dá muito certo. Mesmo assim, os mutirões, continuamos tendo muitos, como antes. É uma troca de dias: vamos nos mutirões que os vizinhos organizam, depois eles vêm nos nossos.

Aqui na Axiquara, tem muita diversificação. Tentamos plantar mogno na mata, mas deu uma broca e não vingou. Plantamos macaúba. Plantamos pupunha, não a que tem espinho, que é para o palmito, a outra. Hoje, na nossa família, já vendemos umas 8 ou 10 toneladas de pupunha (a fruta). Vende-se na região, sobretudo em Altamira.

Na várzea, continuamos a tirar o açaí. Também plantamos pupunha, abacate e outras coisas em uma área de outra família, que disse que a gente podia cuidar.

Tem gente que tem cupuaçu e outras coisas. Tem família que plantou Açaí nas várzeas. Tem outras experiências com outras espécies de pupunha, como em Bacá. Me preocupo, até, porque muito se perde.

No tempo do Nogueira[3], tivemos uma experiência de venda da produção para a merenda escolar. Entregávamos direto nas escolas. De frutas, a gente vendia açaí, taperebá, cupuaçu, maracujá, cacau, que dá o cacau em pó, da amêndoa, mas também o ‘vinho’, suco do cacau.

Hernandes complementa:

Criamos uma cooperativa, a Cooperativa Agroextrativista de Gurupá, que tem sede no Sindicato de Trabalhadores Rurais. Sou o diretor financeiro. Tivemos 6 agroindústrias descentralizadas [para processar as frutas], mais uma frutaria em Gurupá. A ADEPARÁ[4] veio e aprovou a questão sanitária.  Comprávamos até em outras comunidades, o cupuaçu em Gurupá Mirim, taperebá na Maria Ribeira.

Quando começaram a exigir o rótulo e as aprovações de outros órgãos, foi mais difícil, faltou recursos para pagar o código de barras, para legalizar cada tipo de marca, uma para cada tipo de fruta. Tivemos apoio da prefeitura durante um tempo, mas mudou a prefeitura. Tivemos que parar.

Tentamos, também, vender pelo PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar[5]: foi no começo, há uns 4 anos ou mais. Recebemos cerca de R$ 1 milhão pela Cooperativa, mas não deu certo.

Depois, participamos também do PAA – Programa de Aquisição de Alimentos, do MDA. Recebemos R$ 120.000 e acabamos de entregar agora. Aqui na região, somos uma das poucas cooperativas ou associações que conseguiu rodar direito o programa.

Propusemos outro convênio, maior, de R$ 80.000, mas a Caixa Econômica não quis mais executar o programa. Estão esperando um convênio com o BASA para aprovar o projeto.

Agora, a prefeitura não compra mais. No atual mandato a prefeitura, tentamos entrar na concorrência para a merenda escolar. Mas, ficamos com medo de entregar e não receber, porque sabíamos que a prefeitura ia boicotar. Então, alguns daqui entraram individualmente. E vendemos na cidade, mas em quantidade muito menor.

Hermes volta com outro tema: a Casa Familiar Rural, espaço de formação em alternância, onde os jovens recebem formação em técnicas agrícolas durante parte do mês e trabalham em suas áreas na outra parte do tempo. 

Para a Casa Familiar Rural, fomos buscar recursos no governo do Estado, na época em que o governador era o Almir Gabriel. Disseram: tragam o projeto, nós bancamos tudo. Mas nós quisemos que fosse nosso. Tivemos dificuldade financeira.

Os alunos tinham uma semana de aula, com um tema. Depois, passavam 15 dia sem casa. Os meninos chegavam dizendo ‘pai, vamos criar suinos’. Era uma coisa nova em cada semana. Eu respondia: ‘não temos condições’.

Notas

[1] Os financiamentos do FNO eram extremamente rígidos: impunham o plantio das mesmas espécies em todos os lugares, em áreas de terra firme, com técnicas e com quantidades de insumos também determinadas, qualquer que fosse a situação local, ignorando, assim, as especificidades de solo ou clima, etc. Em regiões em que o açaí existe em abundância nas beiras de rios e igarapés, é um contrassenso exigir o plantio em terra firme, submetida a estiagens e com características às quais o açaí nem sempre se adapta. Houve, também, problemas na qualidade das mudas recebidas – todas das mesmas empresas – ou de adaptação das variedades fornecidas aos solos e ao clima local.

[2] A Casa Familiar Rural é uma escola técnica agrícola comunitária, em geral impulsionada pela igreja católica e fortemente ligada às comunidades rurais de sua região. A formação técnica de nível médio é feita em alternância: os alunos, em geral, filhos dos agricultores – ou, neste caso, extrativistas – passam parte do mês na escola e outra parte trabalhando com os seus pais e buscando implantar ou experimentar na prática seus aprendizados na escola.

[3] Raimundo Nogueira Monteiro dos Santos – Prefeito de Gurupá, do PT, eleito em 2012. O município teve uma sucessão de prefeitos do PT, parte deles oriundos do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Nogueira sucedeu a um outro prefeito do PT, mas, em 2016, perdeu a reeleição.

[4] ADEPARÁ – Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará.

[5] Programa vinculado ao FNDE – Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação.