João Gama, que nos hospedou, é um senhor de 76 anos, de cabelos brancos, magro, sorridente, de modos e fala tranquilos. Sua esposa, Maria Lúcia, também sorri o tempo todo e também tem voz mansa. Dois de seu filhos moram com eles: Beraldo, o mais jovem, e José Magno, o mais magro, que mora numa casa ao lado, com sua esposa.

Meu pai chegou em 1936. Naquele tempo, era dos patrões: o barracão ficava na barra do recreio, subindo o rio.

Aqui, era de um grupo de duas pessoas ricas de Belém, mas quem cuidava era o Valdomioro, o filho do Duca Silveira, que era o patrão. O patrão comprava a terra e ia pondo as pessoas nos lugares.

A gente extraía látex, para a borracha, e pagava uma renda para o patrão, uma taxa por estrada de seringa.

De fevereiro em diante, a gente tirava semente de virola, que produzia muito e que era enviada para a COPALA, que fabricava sabão, ou sei lá o que… A gente tirava também semente de andiroba[1], produzia pato, galinha, ovo, banana, milho, arroz.

Não podia vender para outro: tinha que vender tudo no barracão do patrão. Só podia comprar lá, também. A gente sempre ficava devendo. Meu pai cansou de chegar 5 horas da manhã e ficar lá até 1 hora da madrugada, na fila para acertar as contas e fazer as compras. Às vezes, diziam: ‘hoje não tem açúcar nem farinha, só vai chegar com o vento’, porque os barcos eram à vela. Meu pai era pobre, mas morreu em 1991, sem deixar dívidas.

A gente trabalhou muito com esse pessoal, mas, mais ou menos em 1969, o dono vendeu a terra para a Brumasa. Antes de vender, eles alugaram para as famílias para pagar por ano. Ainda quando estava no prazo deste contrato, venderam a terra.

A Brumasa começou a fiscalizar. Eles faziam compensado de virola[2]. Mandaram tirar tudo: ficamos muitos anos tirando virola. Só se acalmaram quando fechou a serraria. Nesse ano, quando quiseram vender a madeira para a Brumasa, ela não quis mais. Eu fiz uma jangada com a madeira que meu pai tinha tirado.

Aí, a Brumasa não quis mais que ficássemos na terra, queriam expulsar nós. Tiraram as coisas do meu pai da casa dele, levaram no vizinho. As famílias foram para Gurupá. O delegado e o promotor mandaram devolver as coisas e obrigaram a Brumasa a mostrar o documento da terra. Mas o documento não alcançava aqui, era só um pedaço de terra mais longe daqui.

O capataz da Brumasa era mau, queria que queria expulsar nós. Nesta ocasião, ele disse que ia para Belém buscar o documento e, se não achasse, não voltaria mais. Não voltou. Conseguimos provar que as terras eram da União. Eles ficaram comandando as terras que eram mesmo deles, lá pelo riu Tauari.

Aí, desde esse tempo, ficamos vendo como ter o documento da terra. Conseguimos criar a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Itatupã-Baquiá, em 14 de junho de 2005. Conseguimos a posse da terra.

Notas

[1]O óleo, conhecido como ‘azeite-de-andiroba’, é extraído das suas sementes e utilizado para a produção de: repelente de insetos, antissépticos, cicatrizantes e anti-inflamatório.” (Wikipedia). Com o óleo, fabrica-se também sabão, com estas mesmas propriedades medicinais. A casca da árvore tem também propriedades medicinais e pode ser usada em marcenaria.

[2] A virola (Virola surinamensis, também nomeada ucuúba, aucuúba, bicuíba) é uma árvore de diâmetro médio, que pode atingir 30 a 35 m de altura, de madeira leve, bastante utilizada em marcenaria, na fabricação de caixas, palitos, compensados, laminados, celulose e papel. Da semente, extrai-se o ‘sebo de ucuúba’, usado na fabricação de cosméticos e produtos medicinais. Um estudo do Museu Emilio Gueldi revela que, em razão da super-exploração, a espécie está ameaçada de extinção, inclusive nas Unidades de Conservação. Saiba mais neste artigo: https://www.oeco.org.br/noticias/27503-museu-goeldi-alerta-para-a-extincao-da-arvore-virola/.